Marcelo Nova: um ponto (sempre) fora da curva
Live do cantor traz a nostalgia de uma época em que não sonhávamos com música pasteurizada e descartável dos dias atuais
Inevitável citar Marcelo Nova quando se fala de rock nacional. Impossível não reconhecer a importância dele no cenário da música brasileira. No último sábado (16), Marcelo apresentou uma live, do sofá de sua casa, acompanhado dos filhos Drake e Penélope.
Batizada de “Os Nova”, oferecida pela casa de shows Galpão 17, de Brasília (DF), a transmissão ao vivo foi recheada de sucessos, opiniões contundentes e curiosidades sobre a trajetória do cantor, que surgiu para o Brasil no início dos anos 1980, capitaneando o “Camisa de Vênus”. Tive o privilégio de participar da live, questionando sobre um dos discos que considero mais emblemáticos, o álbum “Correndo o Risco”, lançado em 1986.
A obra, mais consistente em termos de repertório e produção em relação às anteriores, como o próprio intérprete afirmou, tem canções icônicas. “Simca Chambord”, “Só o Fim”, “Mão Católica”, “Deus Me dê Grana” e a releitura de “Ouro de Tolo” são algumas delas. “A Ferro e Fogo”, acompanhada de orquestra, e com incríveis sete minutos e cinquenta segundos de duração, é uma daquelas deliciosas ousadias a que Marcelo sempre esteve aberto. Antes desse álbum, o Camisa já havia lançado o álbum de estreia, batizado com o nome da banda, e “Batalhões de Estranhos”, ambos marcados pela ironia e deboche inteligente, marcas registradas de Nova.
A live trouxe uma nostalgia dessa época, em que carinhas famosas subiam em palanques pedindo “Diretas Já”. Tempos em que os padres cantavam só na igreja e não eram dublês de estrelas pop na mídia. Pastores não compravam horário nobre nem vendiam milagres descaradamente em rede nacional. Compositores sabiam ler e escrever. Havia uma combinação perigosa de ingenuidade e esperança no ar. A cada dose da primeira, duplicava-se a quantidade da segunda. A juventude acreditava num país melhor que viria, e a música tinha papel de contestar o que já não servia mais. Ninguém poderia imaginar que, décadas depois, ela iria se tornar pasteurizada e descartável.
Com mais de 20 álbuns lançados, Marcelo Nova ainda é desses artistas que remam contra a maré, um ponto que sempre esteve fora da curva. Com o trabalho solo, com seu “conjunto” (como prefere falar) ou com o Camisa de Vênus, continua viajando o Brasil e cantando o que gosta, da forma que gosta. Não estranhe se ele mudar a versão da canção que você curtia na gravação original. Assim como Raul, ele parece ser uma metamorfose ambulante. Compositor de mão cheia, suas canções sempre são surpreendentes e, mesmo as mais antigas, incrivelmente atuais. No álbum “Duplo Sentido”, o primeiro duplo do rock nacional, mais pérolas: “Lobo Espiatório”, “O País do Futuro”, “Vôo 985”, “Após Calipso”, “O Último Tango, “Chamam Isso Rock and Roll”, entre outras.
Da parceria com Raul, na turnê e álbum “Panela do Diabo”, Marcelo resgatou na live “Pastor João e a Igreja Invisível”, “Rock’n’Roll” e “Quando eu Morri”. De “12 Fêmeas”, já com a participação do filho Drake na guitarra e violão, Nova interpretou a impactante “Claro Como a Luz (Escuro como o Breu)”. Drake, aliás, se mostra cada vez mais um excelente músico, e ganhou olhares orgulhosos em diversos momentos e elogios rasgados de Marcelo Nova durante a transmissão. Penélope, acostumada a apresentar programas desde a MTV, acompanhou os versos de quase todas as canções e, em certos momentos de reverência explícita, parecia confundir a figura de ídolo e pai presentes no mesmo personagem.
Como cereja do bolo ainda tivemos alguns depoimentos de figuras como Clemente (vocalista do “Inocentes” e “Plebe Rude”) e Paulão de Carvalho, do “Velhas Virgens”, que nos brindou com uma história hilária sobre uma das vezes que dividiu o palco com Marcelo Nova, que rebateu com um desfecho mais surpreendente ainda. Vale a pena conferir se você não viu.
O cenário da live também chamou a atenção pela simplicidade e, ao mesmo tempo, revelou detalhes da intimidade e gostos do cantor: centenas de discos de vinil, quadros com fotos de Little Richard e Raul Seixas, Discos de Ouro (do tempo em que realmente se vendiam discos de verdade), referências a Elvis Presley. Foram quase 120 minutos de puro rock e diversão. Em alguns momentos, Marcelo não se conteve sentado e cantou de pé.
Depois do término, ainda sob efeito da nostalgia, acesso um site de notícias e volto à realidade. Vejo a foto de um integrante de uma dupla sertaneja que tivera a barba e cabelo cortados pelo parceiro durante uma outra live, que acontecera há poucos minutos. Mais do mesmo, num país que não conseguiu definir uma identidade e vive atolado em crises, em que dois grupos que mais parecem fã clubes de políticos se digladiam enquanto a casa cai.
Desanimado, leio comentários de blogueiros num dos grupos de imprensa do whatsapp dos quais participo por questão profissional. Muitos (principalmente os mais novos) se divertem com a performance medonha da dupla, e postam comentários elogiosos. Para eles, quanto mais caricato, melhor. São os mesmos que acompanham as intermináveis lives de 6h, com cantores ricos e bêbados num verdadeiro freak show. Cantar é o que menos importa, fica óbvio. Outra parte do grupo se cala (a minoria). Não é conveniente discordar dessa massa cuja maior preocupação é o preço do open bar, e não quem faz o show. Me lembro da letra de “Raça Mansa” (Ultimamente tenho estado isolado/Quase não saio mais da minha cabeça/Lá fora a coisa está insustentável/Vai piorar antes que amanheça), outra vez Marcelo Nova traduzindo com perfeição sentimentos em palavras e canção.
E tenho a sensação de que a coisa vai piorar, mesmo antes que amanheça. Desconecto da internet para não pirar. E constato que apesar de tanto tempo que se passou entre o início dos anos 1980 e maio de 2020, as coisas não mudaram. O Brasil, que já foi do “O petróleo é nosso”, das “Diretas Já” e agora é da “Caneta Azul” e dos “Universitários” que nunca se formam, será eternamente o país do futuro. Apesar de tanta informação disponível, a juventude continua ingênua e manipulada por heróis, entre eles “artistas”, criados em laboratório. Gente sem história, sem conteúdo, uma embalagem bonitinha e vazia, mas com milhões de reais (vindos às vezes não se sabe bem de onde) pra investir, batendo recordes de jabá para ganhar fama. Figuras cuja única ousadia é desafiar o conceito de ridículo.
Antes de deitar, me lembro de mais uma canção de Marceleza e Raulzito que retrata o momento: “Muita Estrela, Pouca Constelação”.
Carlos Guerra (Maio/2020)
Confira aqui a live: