Romero no país do futebol
Reza a lenda que o Corinthians mirou em Óscar e acabou acertando no irmão gêmeo Ángel quando buscou o jogador no Cerro Porteño em 2014. O sonho de ter a canhota habilidosa do primeiro foi substituído pela inegável aplicação em campo do segundo. Romero confessou ser conhecedor da história do clube e torcedor desde menino.
Tudo parecia um conto de fadas para o jovem, tal qual a fábula criada por Lewis Carroll há mais de 150 anos. Em vez de “Wonderland”, ele desembarcava em outro país um tanto confuso, o Brasil, que dificilmente o autor conceberia, apesar de possuir uma imaginação pra lá de criativa.
No início ele sofreu (calado) para se adaptar, apesar da proximidade de idioma e mesmo geográfica com a terra natal. Logo ele percebeu que aqui não encontraria personagens como o Chapeleiro Maluco, o Coelho Branco ou a Rainha de Copas, e sim outros bem mais exóticos: Marins, Del Neros e afins.
Pouco a pouco foi ganhando espaço, com muito esforço (sua marca registrada) e mostrando que, mesmo sem ser um craque, poderia ser útil ao grupo. Virou titular, ganhou dois brasileiros e um paulista até aqui, tornou-se ídolo da fiel. Mas nunca foi o queridinho da crônica esportiva. O episódio da reportagem em que ele erra um domínio de bola virou chacota nacional. Desnecessária a “brincadeira” num programa gravado e editado. Romero calou, mais uma vez, e evitou entrevistas por um bom tempo. A resposta veio, como sempre, em campo, no estádio em que é recordista de gols, na vitória sobre o maior adversário e, por fim, a icônica selfie. Então voltou a falar.
No último domingo, após o apito final na partida contra o Santos, Ángel cometeu um erro óbvio ao se referir ao Santos como time pequeno. Ainda no calor da disputa, era melhor ter ficado calado. Porém nada justifica o linchamento moral de grande parte da crítica esportiva. Como se jogasse gasolina na fogueira, ela teve o poder de aumentar a tensão da situação. Lembrando que houve até morte de torcedor antes do clássico. Desnecessário e perigoso, mas vende jornal.
Na reapresentação no clube, Romero assumiu o erro e levantou um problema que todos conhecem e ninguém parece se importar: a xenofobia, regra comum no livrinho do país do futebol. Apesar de exportar jogadores, o Brasil sempre foi um importador com restrições claras. O criticado protecionismo de Trump parece existir no esporte daqui há séculos. No país do futebol – onde há apagões em estádios, arenas superfaturadas, obras inacabadas para a copa que ocorreu quatro anos atrás, uma qualidade técnica que cai a cada campeonato e dirigentes corruptos – os estrangeiros são tratados de forma diferenciada. Se nossos treinadores estão bem abaixo da média, em termos de estudo e aprimoramento na função, os treinadores gringos ainda são opções raras no nosso mercado. A crítica os reprova. Seleção então, nem pensar. Na terra dos locutores ufanistas, a canarinho tem que ser capitaneada por brasileiro. Como se a nacionalidade valesse mais do que o profissionalismo e competência.
Romero tocou na ferida. Provavelmente vá se calar por um tempo, ganhando mais uma vez apoio de companheiros do time. Ele conhece a história do Santos, não é necessário que o Corinthians lhe dê uma cartilha. O que se fala no momento de pressão, não reflete obrigatoriamente aquilo que se pensa. Imagine se alguém colocasse um microfone na sua frente após uma colisão no trânsito, uma discussão acalorada numa reunião de condomínio ou uma demissão surpresa. O resultado seria uma fala sóbria e ponderada?
Ángel errou, mas acerta ao bradar que o Paraguai, sua pátria, tem que ser respeitada. Brincadeiras, quando repetidas à exaustão, perdem a graça e cansam. A alusão costumeira do país vizinho com falsificação é papo comum nos repetitivos e nada inovadores programas das diversas emissoras de TV, canais abertos ou fechados. Como se estivessem em um buteco, já com algumas cervejas na cabeça, analistas destilam veneno em rede nacional.
A diferença entre uma declaração infeliz no jogo e a xenofobia é enorme. Declarações no campo o tempo apaga, preconceito não. Romero é peça importante no time do Corinthians de hoje. Ouso dizer que o treinador conta com Romero e mais dez. Aplicado, perseverante, com um fôlego impressionante, se encaixou no esquema tático e é fundamental em campo. Fora dele, sua presença, assim como aconteceu com Alice, pode causar incômodo a alguns no país surreal do futebol e da hipocrisia.
Carlos Guerra